"we are looking at each other like we're about to kiss"
Encarei o copo em minhas mãos sem saber exatamente o que fazer com ele sendo intolerante a lactose.
Talvez devesse ter comunicado isso ao garoto que estava ao caixa, sorrindo como se sua vida dependesse disso. Era meio difícil negar algo quando mal conseguia abrir a boca, ainda mais quando direcionou o sorriso pré-preparado para mim.
Nunca antes havia sido um idiota por garotos bonitos, entretanto por Peter, eu era todas as coisas borbulhantes e confusas. Nenhuma explicação para esse embaraço.
Fazia um mês desde que o havia notado na loja de quadrinhos, e eu estava lá para comprar um mangá novo de uma novel que tinha iniciado e acabei derrubando um box de livros inteiro em cima do pé de alguém. Que terminou sendo o pé dele. Sempre fui uma pessoa de atenção concentrada, como um cavalo que só costuma olhar pra frente e não consegue olhar para os lados, o que resultou em eu não ter visto o garoto de beleza considerável lendo a mesma escrita chinesa que estava procurando até ele soltar um rugido de dor.
Apesar de ter sido uma série inteira de George R. R. Martin -o que eu tinha certeza que até seus futuros filhos sentiriam uma dor fantasma em seus dedos dos pés sem entender a origem, ele não expressou estar bravo. Com lágrimas nos olhos, disse "tudo bem" quando pedi desculpas.
Notei logo de cara que aquele garoto moreno era uma pessoa que acenava para os vizinhos e dizia bom dia quando sentava ao lado de alguém no ônibus. Ele tinha sorriso largo e aparência reluzente, com covinhas em ambos os lados das maçãs do rosto que eram altas e rosadas, seu rosto exibia uma cor avermelhada exagerada pela dor em um rosto com mandíbulas firmes. Seus contornos rígidos que se perdiam com seus olhos calorosos, seus cabelos são ondulados com cachos que sabia que haviam sido desfeitos de tanto passar as mãos.
Viu? Uma alma hiperativa e amorosa.
Ele me recordou um elfo. Como os de Senhor dos Anéis.
Mas sem a palidez Edward Cullen.
Seu suéter azul só o deixava ainda mais adorável.
Foi estranho quando durante uma pausa do meu emprego em uma loja de roupas, do qual já desempenhava minha função de faz tudo à um ano, passei em frente a sorveteria e lá estava o garoto das novels. Apenas havia se passado uma semana após o desastre da loja de quadrinhos, em que minha vergonha tinha feito minha saída rápida e embaraçosa. Não conseguia negar que o garoto bonito me viu em meu pior estado: em vergonha.
Nossos olhos se cruzaram por um instante pelo balcão e em um relance, soube que ele se lembrava de mim. Surpreendente. Pensei em me aproximar, talvez puxar assunto e levar aquele garoto bonito a falar mais do que apenas “tudo bem” para mim.
Ele não desviou seu olhar de mim quando fiz meu caminho até a loja, o que impulsionou coragem em mim.
Meu caminho foi interceptado por uma garota de longos cabelos negros, que desciam em suas costas em cascatas macias e hidratadas. Ela entrou na loja mais rápido até do que as crianças que estavam próximas ao meu lado esquerdo implorando à mãe para comprar glicose. Impressionante.
O que mais me chamou atenção nela era que usava um suéter azul… um que havia reparado no menino do quadrinho no dia em que agredi seus pés sem querer com livros que pesam toneladas.
Parei um pouco quando ela jogou seu corpo sobre o balcão, e não precisei estar em sua frente para saber que sorria.
-Peter!- Disse alto com uma voz tão doce quanto seu rosto, e Peter sorriu de volta, desviando a atenção de mim rapidamente para ela.
Foi o bastante para me manter caminhando.
Curioso, algo se torceu em meu estômago. Não esperei sentir algo parecido, foi como uma sensação de perda. Não conhecia aquele garoto, como que apenas um olhar para ele havia me dado tantas expectativas?
Voltei para a loja para terminar meu expediente, pronto para deixar a atração como uma coisa que nunca havia acontecido. Era só um garoto.
Antes daquele dia, parecia que nunca o havia visto, mas depois disso, parecia que ele estava em todos os lugares. Na lojinha de quadrinhos? Parecia ir nos mesmos dias que eu. Se caminhava pelo shopping no horário de almoço? Peter estaria em algum local que não era seu local de trabalho. Até mesmo no ônibus, aparentemente voltávamos para casa no mesmo horário e na mesma direção. Mantivemos aqueles olhares, como os do dia da sorveteria, com um reconhecimento esquisito. Sem dizer nada, por duas semanas a mais.
Era enervante.
Como nunca havia notado ele? Meus amigos vivem dizendo como minha atenção era focada, agora tive certeza que isto era de fato verdade. Era deste modo como também nunca notava flertes das pessoas quando eram direcionados a mim.
Vi a garota perto dele mais vezes, e o sentimento de pesar surgia de novo. Aquele estranho… ele poderia sorrir para mim como sorri para ela? Eram momentos em que desejava ser ela. Um desejo novo e incômodo. Não exatamente ser ela, mas ter o que ela tinha. A atenção, afeto e desejo dele.
Virei o estereótipo do menino gay apaixonado por um que garoto hétero que tinha uma linda namorada que poderia aparecer em comerciais de shampoo ou biquíni.
Na terceira semana, fui buscar um quadrinho novo e na prateleira do exato quadrinho estava Peter. Como eu, ele nunca escolhia sentar-se nas mesas ou sofás que havia no estabelecimento. Ele se esparramava ao chão, suas longas pernas e torso ocupando o maior espaço do fundo da loja.
Em suas mãos estava o mesmo quadrinho que havia ido buscar. Tínhamos gostos literários parecidos, quem diria.
Caminhei pela loja temendo ser pego por seus olhos azuis novamente em nossa batalha silenciosa de encaradas. Fui até o balcão, solicitando minha entrega quando Peter suspendeu o rosto. Lá estava, olhos tempestuosos. Suspirei. Ele se levantou quando recolhi minha entrega e fugi quando se aproximou do balcão, sem saber precisamente o motivo de ter escapulido. Peter ia falar comigo?
Ele me deixava tão nervoso que ser coerente se tornava uma tarefa complicada. Essas reações eram inéditas, nem mesmo meu ex namorado havia me transformado em uma pessoa tão reservada e tímida.
O que me trazia ao agora, segurando um copo de sorvete que nem ao menos queria. Quando sai do meu horário de almoço, não estava com fome, e sem planos, resolvi caminhar pelo shopping para me manter ocupado. Meu subconsciente havia me levado até lá antes mesmo de notar.
Até a sorveteria.
Onde Peter estava sorrindo, parecendo incrível com um suéter preto com listras brancas na gola e nas mangas. Ficou surpreso ao me ver parado em sua frente pedindo um sorvete, com algo surgindo em seus olhos.
A garota bonita não estava aqui no momento.
Sua atenção estava toda em mim… como um atendente ao seu cliente. Como somos. Não amigos, não conhecidos, pessoas que se avaliavam constantemente.
Não disse nada além do meu pedido e ele anotou, trazendo segundos depois. Queria dizer algo, começar um assunto, entretanto o medroso em mim apenas pegou o copo e se afastou.
Uma mistura de menta com pedaços de chocolate e flocos.
Fui poupado de descobrir o que fazer com o sorvete quando uma criança correndo chocou seu pequeno corpo contra o meu, fazendo o copo em minhas mãos virar em meu peito. Por sorte, o estrago não foi muito e eu estava vestindo duas camisetas graças ao dia chuvoso.
Acalmei a responsável pela criança quando pediu deveras desculpas pelo comportamento do pestinha que não parecia arrependido e me dirigi ao banheiro da pequena loja.
Alguém bateu na porta quando retirei a primeira blusa.
-Garoto do quadrinho?- Uma voz forte ressoou.
Perplexo, abri a porta para encontrar Peter sorrindo para mim.
-Muito estrago feito?- Perguntou bem humorado quando notou meu estado desalinhado, segurando minha blusa cinza que agora detinha uma mancha verde em seu centro.
Decidi ir pela linha bem humorada para retirar meu estupor.
-Apenas no meu ego.
-Não se preocupe, temos altos índices de acidentes envolvendo crianças por aqui. Seu ego pode permanecer intacto- Piscou para mim, tornando cada parte orgânica em mim em um emaranhado derretido.
O sorriso que surgiu em mim não pôde ser evitado.
Seu sorriso de retorno não era tão grande como sempre, era contido, quase tímido. Esperei que ele virasse e fosse embora, porém ficou.
-Então, sou o garoto do quadrinho?
Ele riu. -Bem, não sei seu nome. E os olhares não são exatamente a melhor forma de conversar desde que a linguagem foi inventada.
Espertinho, gostei.
-Meu nome é Dorian.
-Como Gray?
-Exatamente, só que no meu caso não se teve pactos incluídos durante a vida.
Quando riu novamente, descobri o prazer que era ter alguém que apreciava meu humor. Nem todos entendiam a minha forma de piada.
-É, o mundo real não é tão empolgante quanto. Prazer, Dorian, meu nome é Peter.
-Eu já sabia.
-Descobriu telepaticamente?
-Poderia dizer que foi pelo crachá- Apontei para o objeto branco com seu nome escrito sobre seu suéter branco, notando que o suéter agora estava em suas mãos e não mais em seu corpo. -Mas descobri porque escutei uma garota dizer.
Peter suspendeu sua sobrancelha. -Uma garota?
-Sim, alta, morena e com cabelo longo.
-Essa seria a Jude.
Jude, o nome amargou para mim.
Claro que ele notou como meu rosto enrugou um pouco mesmo disfarçando. Isso pareceu divertir ainda mais ele.
-Você tem algo contra a Jude?
-Não- e não era mentira, eu nem a conhecia.
-Bom, seria esquisito estar afim de um garoto que tem alguma coisa contra a minha irmã.
-Irmã?!- Berrei. Se estivéssemos em uma novela, aquela seria a parte em que eu cuspiria a água de um copo.
Seu sorriso agora era inteiro e reluzente. -Foi nisso que prestou atenção?
Agora fazia sentido o suéter que ela usava. Pensei que havia dado a ela como namorado, mas era apenas uma irmã roubando roupas do irmão.
Suas palavras finalmente obtiveram seu significado. Meus olhos quase saltaram do rosto. Ele estava afim de mim?
-Você está afim de mim?
Deu de ombros.
-Sempre esperei que viesse falar comigo, não sabia se gostaria que eu fosse até você. Toda vez que me aproximei, você fugiu.
Por um segundo, o choque fez meu cérebro entrar em choque. Fitei o suéter em suas mãos, focando antes de voltar a olhar para ele, falando baixo:
-Você... hum, queria que eu falasse com você?
-Sim, por que me evitou?
-Pensei que Jude era sua namorada- A confissão fez meu rosto ficar vermelho.
Nós nunca tivemos nada e já havia sentido ciúmes dele. Louco.
Sua vez de enrugar o rosto. -Nojento.
-Completamente- Rimos juntos.
Ele estendeu o suéter para mim. -Vim trazer isso para você, está frio e não sabia se teria outra roupa reserva.
Isso tinha sido tão doce, algo que não esperava que ocorresse.
-Obrigado!- Peguei em sua mão, colocando no mesmo minuto. Tinha seu cheiro, como algum amaciante floral e perfume masculino. Muito bom. Era reconfortante pensar que retirou algo de seu corpo para me entregar. -E você, não vai ficar com frio?
-Minha irmã vai me trazer outro em apenas alguns minutos, ela mora nesse shopping basicamente- Aquele sorriso surgiu em seu rosto de novo quando me avaliou com sua roupa. -Essa roupa parece bem melhor em você do que em mim.
Isso era definitivamente uma mentira, porque não tinha como conseguir ficar melhor em mim quando nele parecia a própria perfeição. Mas suas palavras afastaram qualquer frio que pudesse vir a sentir, porque cada palavra sua mandou um rastro de calor por todo o meu corpo.
Alguém gritou seu nome no caixa e seus ombros caíram quando notou que teria que ir. Nossa primeira interação chegando ao seu fim.
Seus olhos estavam em mim novamente. -Antes de eu ir, Dorian não Gray, você vai ter que me prometer que a partir de agora vai falar comigo todas as vezes em que nossos olhos se cruzarem.
Dei de ombros ainda com o sorriso que parecia permanente beirando em meu rosto. -Não teria como ignorar o garoto que estou afim. Ainda mais que agora tenho uma desculpa em formato de suéter para puxar assunto.
Sua risada ressoou de novo. Já amava esse som. Ele estava feliz em saber que eu gostava dele assim como ele gostava de mim.
-Vou te dar outro sorvete, venha- Acenou com a cabeça para o caixa.
-Não precisa, sou intolerante a lactose.
Nos meses seguintes, cumpri minha promessa.
Toda vez que nos víamos, nos falávamos. Seria esquisito evitar meu namorado.
Às vezes não parecia real que aquele garoto lindo era meu, e inteiramente não hétero, graças a todos os deuses. Ainda nos olhávamos em completo silêncio, como os apaixonados que somos, agora entendendo o significado de apenas observar o rosto de alguém tendo noção de cada ponto que amavam, como se fosse a melhor coisa que já havia visto. Estava em seus olhos desde a primeira vez que nos vimos.
E ainda residia.
Assim como eu sabia que havia estado nos meus.
E nos dele, assim que me avistou na biblioteca lendo ao lado dele inconsciente de que me observava.
FIM